segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Frêmitos puros

Tudo que é vivo vibra. A gente não vê, a gente pode até não saber, mas vibra. A Terra vibra. O que há de mais moderno no pensamento humano refere-se ao universo como um conjunto vibracional. James Lovelock nos fala de um pulso que vem do centro da Terra. Vibrar convida à prática do equilíbrio dinâmico. A saúde de todos os organismos vivos depende da dinâmica desta vibração e, há muito, já se sabe que o contrário da vida não é a morte, mas a falta de movimento.
Rimbaud vibra em Talis Castro. Em seu microcosmo humano, o ator se oferece para encarnar as revoluções dos processos internos deste poeta caótico.

Foto: Maira Lins/Comunika Press

“RIMBAUD -     Você pode quebrar essa poltrona, pôr fogo nela... arrebentá-la toda... E sair... sair... sair... Viajar terrivelmente e morrer cedo. Que venha, que venha a hora da paixão!”

Como nada está separado de nada, a melhor forma de pensarmos a natureza humana e seus  fenômenos é traçando relações entre eles, recorrendo à sabedoria da natureza.

Buscando inspiração no âmbito da geologia podemos tecer um paralelo entre as chamadas “placas tectônicas”  (que formam a crosta terrestre) e as camadas internas do poeta Arthur Rimbaud, com vistas a compreendermos melhor o aparecimento dos “tremores” na personagem encenada em Pólvora e Poesia. Vejamos:
A crosta terrestre não é única. É composta por várias camadas que se movem umas em relação às outras, quebrando, mudando de lugar, gerando novas. O poder disso é muito grande, capaz de gerar ocorrências grandiosas. O que gera terremotos, maremotos, entre outras várias manifestações geológicas é a força do movimento das placas tectônicas.  Quando a força imposta pelo deslocamento das placas é maior do que o atrito que está segurando uma  contra a outra, surgem os grandes movimentos. A Terra treme e amplia seu estado de vibração ao atingir um ponto de ruptura, transformando tensão em produto.
Rimbaud era incomum.  

“RIMBAUD -     Eu é um outro! É preciso ser vidente. Fazer-se vidente. O poeta se faz vidente por meio de uma longa, imensa e racional perda de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; buscar a si, esgotar em si todos os venenos, para que reste só a essência. O poeta é o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito - o supremo sábio - pois entende o que ninguém sabe! O poeta é o verdadeiro ladrão do fogo. Toda palavra é ideia, e um dia existirá a linguagem universal. Uma linguagem que falará de alma para alma compreendendo tudo: perfumes, seres, sons... Pensamento que se liga a outro pensamento e o arranca para fora.”

Os poemas de Rimbaud revelam um humano multifacetado e prismático. Seus escritos são hologramas vivos que se movem e convidam quem lê a abandonar o pensamento como fonte de compreensão.

São palavras que derretem a pele, expõem os nervos e questionam os sentidos. A revolução poética a partir de sua obra foi conseqüente. Como escapar ou conter?  Nenhum atrito foi capaz de suster tal onda e a sociedade da época foi balançada. Tremeu.

“RIMBAUD -     O vento abençoa minhas manhãs marítimas. Mais leve que uma rolha eu danço nos lençóis ondas a rolar atrás de suas vítimas, dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis! Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos, a água verde infiltra-se no meu casco ao léu e das manchas azulejantes dos venenos e vinhos me lava, livre de leme e arpéu.”


Foto: Maira Lins /Comunika Press


O corpo de Talis Castro treme. Vibra em ressonância com sua coragem de atirar-se a processos  que suscitam vulcões, que evocam maremotos, iminências de morte, atritos furiosos entre suas “placas internas" que geram abismos que comportam a poesia de Rimbaud. O produto de sua pesquisa não traz resultado muscular, mas neural, “latescente, devorando azulidades com quebrantos e ritmos lentos sob o rutilante albor”. O ator está repleto de vitalidade e a personagem nasce agônica sob um paletó roto e calças com bolsos descosturados. Não e possível reter nada ali. Como pura onda de energia, tudo existe e passa.

Assim como o planeta, o que a platéia vê é um organismo em equilíbrio dinâmico, vulcânico e paradoxal. Está no tempo e além dele. Ultrapassa a vibração. Treme.

“RIMBAUD -     Eu mergulho nas águas do poema do mar sarcófagos de estrelas, latescente, devorando os azuis, onde, às vezes - dilema lívido um afogado afunda lentamente. Onde, tingindo azulidades com quebrantos e ritmos lentos sob o rutilante albor, mais fortes que o álcool, mais vastas que os nossos prantos, fermentam de amargura as rubéolas do amor!”

Cada corpo tem sua frequência. Este é um conceito da física. Quando esta freqüência é atingida por um estimulo externo, as moléculas que estavam estabilizadas começam a vibrar desordenadamente. A depender do que seja pode ser destruído. Já houve pontes que ruíram assim. Esta vibração coloca a estabilidade em risco. A isto chamamos frequência de ressonância. Ken Wilber trata de Ressonância Mórfica e inclui o ser humano e suas particularidades no conceito físico. Assim compreendemos melhor, pela ciência, o porquê da destruição de Verlaine.

Na geologia, tudo que tem valor é diferente.  As gemas (pedras preciosas)  são valorizadas pelo seu conteúdo diferente do normal – as chamadas impurezas. Impurezas nem sempre são nocivas. Elas geram identidade, valor, rareza. Por exemplo, um diamante sintético, 100% puro, tem um valor comercial muito baixo.  A impureza é que vai lhe dar cor especial, brilho diferente. Assim o ator criou Rimbaud, maravilhoso “quartzo fantasma” – mineral raríssimo que mostra um duplo de si dentro. Entretanto, ao pé da letra, seria um defeito. Uma anomalia de crescimento do cristal.



Foto: Maira Lins / Comunika Press


Em um dos ensaios, Guerreiro falou, enfático como sempre: “O real não tem muletas”. Retiramos nossas muletas lá atrás, quando decidimos saltar – e não apenas pular. Fiquem atentos, da próxima vez: não é só Talis que vibra e treme. Somos todos nós da equipe. Quilhas rompidas, oceano adentro.

“RIMBAUD - Conheço os céus crivados de clarões. As trombas, exatas marés. Conheço o entardecer, a alvorada em explosão como um bando de pombas e muitas vezes eu vejo o que o homem quis ver.”

*Escrito por Hilda Nascimento - Assist. de Direção e Preparadora de Elenco 

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